Cartas de Amor para quem não vê

Convida-me para o descanso,
Convida-me para a distância,
O mundo dos vivos é vasto e os vivos são vagos.
Gritava por ti na varanda
Não te via
Gritava por ti na varanda
Não me ouvia

Quase que falavas.
Falavas pouco.
Acho que ias a cantar.

Todas a mulheres conseguem chorar.
É natural, é a nossa condição.
Não esquecer.
Há uma altura em que quase me esqueço de ti.
Lavada em lágrimas, vestida de negro, não, negro é de hoje.
Hoje já anoiteceu.
Tocam à campainha. Não me apetece.
Não estou arranjada, detesto que me vejam assim, tão desmazelada.
Como me pudeste tratar assim?
E agora quem é que me protege?

E agora quem é que cuida de mim?

E agora… quem é que faz milagres?


Mostra-me a tua cara
Livre e lúcida
Já que não leio as histórias do teu isolamento.
As pessoas estão sempre a perguntar por ti sem querer saber
Perdeste-as como querias.
Eu no teu lugar estava cheia de receios.
Descobri no que estava a pensar quando te abri a porta.
Alguma coisa importante sobre o dia de amanhã. Estou convencida que vai estar a chover.
Alguma coisa sobre as cartas encharcadas.
Sobre queimar livros para aquecer as mãos que os sem abrigo liam ao serão.
As mãos e os livros.
Sobre o relógio daquela estação.
Sobre a sujidade e o abandono da cidade.
Alguma coisa sobre os dias todos a seguir.
Para não falar na tua condição, era uma doença, acho que era assim que lhe chamavam. Não me recordo do outro nome, aquele que diziam que sofrias.
A inicio deliravas frequentemente, murmuravas com os olhos fechados horas e horas, tentava perceber o que estavas a dizer, se acaso poderia ser uma conversa em que te respondia, mas era tudo mais antigo que a minha língua. Depois já deliravas menos, ficava aflita e não conseguia dormir. Até que apenas a minha insónia ficava a velar o teu silêncio.
De qualquer maneira já se tinham ido todos embora.
Lembrei-me ontem da primeira vez que te vi a delirar, lembrei-me ontem porque ontem foi a última.

Mostra-me a tua cara
Leve e acordada
Confusa e mutilada que seja
Se pelo menos abrisses os olhos
Só quero que saibas de que lado da cama estava naquela noite
Que me peças para te matar. Que me dês uma oportunidade!

Volta, Volta, - Volta


Traz-me a tua mão velha para me mandar calar.
Dança comigo antes de a levares,
Antes de levares a única noite em que não te perdi,
Deixa todas as outras, deixa exactamente onde te pedi
Da maneira que te tenho
Não largo
Da maneira que te amo não te vi.

Da maneira que me lembro de ti, muito antes me esqueci.

Convida-me para o escuro
E acende uma luz quando me afogar
Esventra-me os sentidos esquecidos da verdade
Como a praga que branda aos portões da vila
Invade os rumos vertebrados de perseguições
Para que nos sirva a culpa, basta que o remorso não sobeje para nos culpar.

Volta - Volta - Volta!

Castiga a terra deserta de pecados
Traz-me os teus cometas e a glória de chuva carregada
A calamidade incerta dos venenos dourados
E dos teus dedos…
Ilimitados.

Acende uma luz quando me entregar,
São tantos pela estrada estreita que me pediu para chegar
Quem te culpa agora?

Certamente nem tanto quem te perguntou pela abundância do mar
Quem te censura agora?

Quase a caneta morta que deu por ti a acordar.
Quem te persegue agora?

Ninguém.